Tribunal de Justiça orienta juízes a cumprirem artigos da Lei Maria da Penha

A partir de provocação de advogada feminista, Tribunal emitiu orientações e OAB promete promover curso para advogados.

Criada há 14 anos, a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas para mulheres que sofrem violências praticadas pelos seus companheiros abusivos ou pelos próprios filhos. Isso porque a legislação vai muito além da simples punição. Ela tem um papel assistencialista que prevê acolhimento. A violência doméstica é muito mais complexa do que outros crimes, pois é uma violência que começa sutil, com abuso psicológico, e vai se tornando mais grave com o passar do tempo. Além disso, envolve uma relação que iniciou com afeto.

Se reconhecer vítima quando há envolvimento emocional, familiar e, muitas vezes, financeiro, é o primeiro desafio antes da mulher registrar o boletim de ocorrência. Muitas, acabam desistindo no meio do caminho, pois o percurso costuma ser longo, pode envolver divórcio e a guarda dos filhos, e nem sempre os parceiros com caráter possessivo estão dispostos a desistir – o que se reflete no aumento dos feminicídios.

Pensando em todas essas questões que envolvem a denúncia de qualquer violência no âmbito doméstico e familiar foi que a advogada Tammy Fortunato, de Florianópolis, provocou a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC) a alertar o Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o cumprimento de dois artigos esquecidos da Lei Maria Penha.

No artigo 27 diz que em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência deve estar acompanhada de advogado. O artigo seguinte, o 28, reforça que deve ser garantido a todas as vítimas o acesso aos serviços da Defensoria Pública ou de Assistência Jurídica Gratuita. Significa que se a mulher não tiver condições para constituir um advogado particular, ainda que ela esteja sendo representada pelo Ministério Público, ela deve ser assistida por um defensor público.

O movimento foi feito e teve resultado. Uma circular foi emitida pelo TJSC orientando os juízes de todas as comarcas que atuam nas varas de violência doméstica e da família a cumprirem a lei.

A própria Corregedoria-Geral da Justiça Estadual, que acolheu o pleito assinado pelo presidente da OAB/SC, Rafael Horn, constatou que mais da metade (54%) das unidades judiciárias estavam inobservando a exigência dos artigos.

Tammy Fortunato que fez a provocação e é especialista em direito da família e violência contra a mulher promoverá capacitação dos advogados que atuam na área. Em entrevista à Coluna Pelo Estado ela comenta a importância do cumprimento do artigo e como a assistência jurídica pode contribuir para mudar o rumo da vida dessas mulheres já fragilizadas pela violência sofrida dentro de casa.

 

 

Os artigos 27 e 28 que preveem a assistência jurídica à mulher vítima de violência doméstica estão previstos na Lei Maria da Penha desde que ela foi criada em 2006. A legislação já existe há 14 anos e nunca ninguém se atentou para esse tópico da lei? Por que?

Como a maioria das ações por crimes previstos na Lei Maria da Penha são públicas incondicionadas (não depende da representação da vítima), o autor acaba sendo o próprio Ministério Público. Então, eu acho que nunca ninguém se atentou à posição da vítima da violência doméstica, da necessidade e da vulnerabilidade dela. Quem se atentou para o lado vulnerável dessa mulher foi o legislador quando criou a lei. A Lei Maria da Penha tem um viés muito mais protetivo e assistencial do que punitivo. Essa foi a intenção do legislador, o de proteger essa mulher, e isso foi ignorado pelo judiciário, pelo menos aqui no Estado de Santa Catarina. Na própria circular do Tribunal de Justiça diz que mais da metade das comarcas não estava observando a exigência dos artigos e esse número pode ser maior.

Os juízes não estavam observando os artigos por desconhecimento ou por inércia?

Até mesmo por inércia, porque o juiz de ofício já deve nomear um advogado. Ele deve intimar essa mulher para que ela constitua um advogado. Caso ela fale para o juiz que não tem condições de arcar com as despesas de um advogado, o magistrado tem a obrigação de nomear um advogado dativo para ela ou, nos lugares em que há atuação da Defensoria Pública, um defensor público para atuar na assistência dessa mulher.

 

Qual é o efeito de se constituir um advogado para uma mulher vítima de violência, mesmo que ela já esteja sendo representada pelo MP?

Isso evita que a mulher seja revitimizada e que ela seja pressionada ou coagida pelo autor da violência ou pela família do autor da violência a desistir do processo ou a mentir sobre os fatos. Evita também que o advogado do agressor entre em contato direto com a mulher. Isso que está sendo feito, pode parecer simples, mas tem estudo dizendo que quando a vítima se sente acolhida e protegida pelo sistema de justiça, a probabilidade de ela retornar para aquele relacionamento abusivo é menor.

O que acontece com a mulher que não tem advogado constituído?  

Elas vão sozinhas com a cara e com a coragem. O Ministério Público orienta as mulheres até um determinado ponto. O MP não tem como acompanhar a mulher numa ante-sala para protegê-la de algum tipo de coação ou verificar se essa coação está ocorrendo por fora do processo. O MP também não tem como orientar essa mulher na questão dos alimentos, filhos e guarda. O trabalho do MP na defesa dessa mulher é limitado. Por isso há a necessidade de se ter um advogado, para protegê-la e assisti-la.

 

O que te mobilizou a fazer essa orientação aos poderes responsáveis?

Isso me incomoda faz um tempo. Em  junho deste ano participei de uma live com a OAB e levantei essa questão. Depois escrevi um texto falando sobre o assunto que foi bem divulgado e em seguida um artigo científico em parceria com o Alexandre Muniz (promotor de justiça e esposo de Tammy). Após a publicação do artigo científico é que se vislumbrou a real importância de as mulheres terem um advogado fazendo a assistência delas. Fiz a provocação para a OAB, que concordou, e encaminhou um ofício ao Tribunal de Justiça. O TJ, por meio da corregedoria, atendeu prontamente ao pedido. Apenas o Ministério Público ainda não se manifestou sobre o assunto.

 

E qual seria o papel do MP no cumprimento dos artigos 27 e 28?

O papel do MP é orientar os promotores de justiça para que fiquem atentos. Caso o juiz de ofício não nomeie advogado, o promotor pode fazer solicitação, até porque ele é o fiscal da lei.

 

Quem vai fiscalizar o cumprimento da lei?

O Ministério Público deve fiscalizar se o artigo está sendo cumprido. A própria mulher, sabendo desse direito, também pode exigir do juízo que quer um advogado porque, até então, as mulheres não sabiam desse direito.

 

Que tipo de orientação o advogado deve fazer às vítimas de violência doméstica?

A lei fala em alguns tipos de acolhimento que vão desde o atendimento psicológico e social até a assistência jurídica. O advogado deve acompanhar a mulher na audiência e também orientá-la fora da audiência. Ele precisa deixá-la tranquila e orientá-la sobre a guarda dos filhos, alimentos, bens e divórcio.

 

Você vai capacitar profissionais através de um curso que está sendo promovido pela OAB. Por que um advogado precisa de especialização focada nesse tipo de atendimento?

A Lei Maria da Penha é mais específica do que as outras, ela trata de um tema extremamente delicado e lida com pessoas que estão em um estado de vulnerabilidade muito grande. Além da fragilidade, há famílias machucadas. A violência não atinge apenas o homem e a mulher, se estende aos filhos e aos pais, ou seja, envolve toda a família. A capacitação será importante para despertar a sensibilidade no profissional e para que ele conheça o que é a violência doméstica, as fases da violência, o motivo pelo qual a mulher está retornando para o relacionamento abusivo e a dificuldade de romper com esse relacionamento.

 

Em que momento da sua carreira profissional você passou a atuar focada na violência contra a mulher?

Desde que eu me entendo por gente eu atuo na causa. Sempre fui uma defensora das mulheres, sempre briguei pelas mulheres, no sentido de buscar os mesmos direitos e igualdade com os homens, e na época da faculdade comecei a explorar isso. Vai fazer 18 anos que sou formada e atuo no Direito de Família. Não tem como atuar no direito de família sem olhar para a violência contra a mulher. É um tabu muito grande, as pessoas têm medo de falar da violência, tem vergonha e é uma causa que eu me apaixonei. Comecei a me aprofundar e a escrever sobre o assunto. Depois passei a dar aulas e palestras com o intuito de conscientizar as mulheres de que elas não precisam viver num ambiente que não é sadio e para mostrá-las que existe um caminho para a felicidade, não só para elas, mas para os filhos também.