“Eu vou comer hoje, amanhã eu não sei”: casal de médicos fala sobre crise econômica na Venezuela

O casal vivenciou de perto o início do colapso no país, que desde 2013, vive a maior recessão de sua história.

Imagem: Divulgação

 

 

A crise econômica, social e política na Venezuela vem ganhando contornos de tragédia há alguns anos. O país vizinho vive a maior recessão de sua história, desde que Nicolás Maduro assumiu a presidência, gerando uma onda migratória sem precedentes de venezuelanos.

 

O casal de médicos, Juan Carlos Rondón Fuentes e Joandry Coromoto Viera de Rondón, vivenciou de perto o início do colapso da Venezuela. Recentemente, através de uma live no Instagram do Restaurante Dom Pedro, o casal contou a história de luta e sofrimento em seus país.

 

Ambos são venezuelanos e tiveram a oportunidade de estudar Medicina em Cuba, onde acompanharam de perto a realidade de um país socialista. “Nesta época a Venezuela estava com boas condições econômicas. Durante a faculdade, alguns cubanos falavam que nossa nação seguiria pelo mesmo caminho de Cuba dentro de alguns anos, mas achávamos que isso era impossível”, disseram.

 

O casal era defensor do governo de Hugo Chávez, que surgiu com a proposta de combater a desigualdade e promover uma política de assistencialismo na Venezuela.

 

“Durante muito tempo, tivemos a ajuda do governo, conseguimos estudar e ter uma certa estabilidade. Com a morte de Hugo Chávez em 2013, nossa nação começou a declinar e a tomada do poder por pessoas com interesses particulares instaurou uma nova realidade no país. A conta de todo esse assistencialismo chegou e as pessoas começaram a perceber que havia um preço a ser pago”, contam.

 

Juan Carlos trabalhava na rede pública de saúde durante o estopim da crise e viu sua liberdade e autonomia serem ameaçadas.

 

“Lembro que o governo apresentava muitas estatísticas duvidosas sobre a saúde no país. Quando houve surto de zika, você não podia informar nos laudos que o paciente estava com a doença. Éramos obrigados a dizer que se tratava de uma síndrome febril. Eles queriam pintar a Venezuela como a melhor medicina do mundo, sendo que a realidade dos nossos hospitais era muito triste. Não podíamos falar sobre nada do que estava acontecendo”, conta.

 

O médico disse ainda que era obrigado a mentir sobre o estado de saúde dos pacientes. “Se receitássemos um remédio que o hospital não tinha no estoque, corríamos o risco de sermos processados. Afinal, teoricamente, por ser um hospital público, deveria prover de tudo. Tudo o que não queria era perder meus valores, e quando vi, estava tendo que brincar com a saúde da população e mentir para os pacientes sobre seus tratamentos”, afirma.

 

A economia e a fome

O casal conta que a partir de 2016, a crise se intensificou e a moeda da Venezuela, o Bolívar, começou a ficar cada vez mais desvalorizado.

 

“Com cada alta no Dólar, o nosso dinheiro desvalorizava em questão de horas. O salário mínimo lá equivale a 10 dólares. Você só consegue comprar uma caixa com 30 ovos e um quilo de carne. Para se manter o restante do mês, você precisa inventar algo. O venezuelano virou especialista em inventar. No começo a gente tinha a cesta cheia e aos poucos foi reduzindo. Éramos obrigados a suportar isso calados”, afirma o casal.

 

De acordo com Joandry, as pessoas trabalhavam o mês inteiro para conseguir comer por apenas uma semana. “Teve momentos que a gente só tinha a comida para o dia. É algo como “eu vou comer hoje, amanhã eu não sei”. Aos poucos, fomos vendo as grandes empresas internacionais saírem do país e os alimentos que vinham do governo começaram a diminuir. Eu que era médica formada, tinha que fazer transporte com nosso carro e vender doces e bolachas para complementar a renda. E ainda assim, mal conseguíamos o suficiente para comer”, conta.

 

Para Juan, o maior medo do casal era não saber como seria o futuro de seus filhos. “Se hoje tínhamos o pão, amanhã teríamos fome. Um dos motivos para decidirmos sair de nosso país é porque não queríamos deixar o futuro de nossa família na mão de outros. Queríamos ter a nossa liberdade”, afirma.

 

Desigualdade e eleições

O casal conta que a escassez na Venezuela não mede status social e que todas as pessoas foram afetadas com o regime. “Independentemente do que você faz, você precisa viver da mesma forma que os demais. Você não merece mais, mesmo que seja mais esforçado que os outros. Eu concordo que todo mundo mereça ser tratado com dignidade, que tenha o suficiente para se manter e viver bem. Mas também acho que as pessoas deveriam receber, com base no seu esforço e qualificação. Lá se você tem dinheiro, eles querem tomar seus bens, sua empresa. Eles querem nos igualar, tomando o que você tem. E assim ficamos igualmente pobres”, afirma Juan Carlos.

 

O médico conta ainda que a estrutura das eleições no país é pouco confiável e os princípios de democracia e de autonomia entre executivo, legislativo e judiciário praticamente não existem. “O que importa é o que o partido quer. Se você não está de acordo com aquilo que eles pensam, você é censurado, sofre perseguições e precisa se desdobrar para sobreviver”, pontua.

 

Para o casal, o modelo socialista centraliza o poder político e econômico, impedindo a liberdade e a autonomia da população. “Antes de exercer o voto, precisamos pensar até onde determinadas propostas, que parecem boas à primeira vista, podem chegar. Se um dia teremos poder de escolha sobre nossas decisões e sobre nossa própria família. Se queremos que o estado tenha controle sobre nosso emprego, nossos filhos, casa e bens materiais. Se queremos continuar tendo direitos ou não. Precisamos de consciência na hora de eleger nossos representantes, pelo bem da democracia”, concluem.